OS PRINCIPAIS ALVOS DA DOENÇA QUE FOR IRRADIADA DAS PRISÕES
SERÃO AS FAVELAS E BAIRROS POPULARES ONDE VIVEM OS POBRES E A MAIOR PARTE DA
POPULAÇÃO NEGRA DO PAÍS
Decisão tomada na 7ª. Vara Criminal de Belém, atendendo a
Recomendação nº 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que trata da
reavaliação das prisões em tempo de disseminação da doença do coronavírus.
O réu foi colocado em prisão domiciliar por se considerar que o crime
de tráfico de drogas do qual é acusado não foi praticado com violência ou grave
ameaça contra a pessoa, não havendo indicação de que o preso seja pessoa dotada de
extrema periculosidade.
Foi levado em conta que as prisões brasileiras, com suas características
de superlotação e insalubridade, poderão se transformar em focos de
disseminação da doença para toda a população e não somente para os presos, sendo
que os principais alvos da doença que for irradiada das prisões serão as
favelas e bairros populares onde vivem os pobres e a maior parte da população
negra do país, repetindo, assim, o que se viu na cidade de Nova York, onde a
prisão de Rikers se tornou um foco de disseminação da Covid-19 para os bairros
onde vive a população negra daquela cidade dos EUA.
Segue a integra da decisão:
“Vistos, etc.
Vieram-me os autos conclusos por
ordem deste magistrado titular da vara, com fundamento no art. 4º, inc. I, e
seus incisos da Recomendação nº 20/2020 do CNJ, a qual determina a reavaliação
das prisões provisórias, nos termos do art. 316, do Código de Processo Penal,
com vistas à redução dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto
local de disseminação do coronavírus, motivo pelo qual, passo a
reapreciar a prisão preventiva de F.M.C.J.
O réu foi denunciado pelo crime
previsto no art. 33, caput, da lei 11.343/2006, qual seja, tráfico ilícito de entorpecentes,
estando preso desde o dia 13/02/2020, quando policias efetuaram a prisão em
flagrante do denunciado por encontrarem na posse do mesmo 57 papelotes de
maconha, com peso total de 30,4 gramas, bem como a quantia de R$ 18,00 (dezoito
reais), sendo que, segundo a narrativa da denúncia, os policiais observaram a movimentação
no local da prisão e a comercialização se dava quando algumas pessoas
procuravam o denunciado que se dirigia até à beira do canal, pegava a droga,
retornava e entregava a substância ilícita.
Portanto, o caso do réu se
enquadra dentre aqueles que merecem reavaliação, pois o crime de tráfico de drogas que se apura não foi praticado com violência ou grave ameaça à pessoa,
nos termos da alínea c, do inc. I, do art. 4º da recomendação nº 62/2020 do CNJ.
O flagrante foi convertido em prisão
preventiva em audiência de custódia realizada pela 1ª. Vara de Inquéritos
Policiais de Belém, se encontrando entre os fundamentos da decisão que
converteu o flagrante em preventiva o fato de o réu já possuir condenação
transitada em julgado pelo crime de roubo majorado, sendo que estava sob regime
de prisão domiciliar.
Passo à reanálise.
Com relação à excepcionalidade
com que se deve aplicar medidas de manutenção do encarceramento durante a
pandemia da Covid-19, vejamos as seguintes razões.
Em primeiro lugar, deve
ser lavado em conta – se não quiserem considerar razões humanitárias que
justificam o desencarceramento em meio a uma situação de pandemia – que
existe um risco real e iminente: o de que as prisões se tornem
epicentros de disseminação da doença para toda a população.
Engana-se quem pensa que só a população
carcerária corre risco de ser afetada por um surto de Covid-19 nos locais de
custódia. Todas as pessoas que trabalham nas unidades prisionais, como agentes
penitenciários e de escolta, policiais, advogados, defensores públicos, juízes,
promotores, profissionais de saúde, psicólogos, assistentes sociais e, por
consequência, todos aqueles que os cercam, seus familiares, amigos e vizinhos estarão
vulneráveis. No país todo milhares de servidores prisionais entram e saem das prisões,
todos os dias.
Não se pode esquecer que o Poder
Judiciário continua decretando novas prisões, bem como há presos que, nesse
período, verão suas penas chegarem ao fim e serão soltos, o que propiciará que
o vírus transite para dentro e para fora do sistema.
É de se observar, nesse sentido, a
experiência de países em que a pandemia já se encontra em estágio mais
avançado. Em Nova York, o novo vírus está se disseminando pelas prisões e o
ambiente prisional está sendo considerado um epicentro de contaminações na
cidade, conforme análise da Legal Aid Society, que aponta que a taxa de infecções
no ambiente prisional espraia-se em velocidade sete vezes maior que no restante
da população [Disponível em: https://www.conversaafiada.com.br/politica/prisoes-de-nova-york-viram-epicentro-do-coronavirus-aprenderemos-a-licao.
Acesso em 06.04.2020 às 12h40min].
Segunda a reportagem citada:
“as prisões da cidade de Nova York
têm uma taxa de infecção assustadoramente alta, de acordo com uma análise da
Legal Aid Society.
‘Com base nessa análise, as prisões
da cidade de Nova York tornaram-se o epicentro do COVID-19’, disse um advogado
da Assistência Jurídica.
...
A taxa de infecção nas prisões da
cidade é de 14,51 por 1.000 pessoas, segundo a análise. Isso é sete vezes
superior à taxa da cidade de Nova York, que se tornou um epicentro nacional da pandemia,
e onde cerca de 2 em cada 1.000 pessoas estão infectadas.
...
O fracasso em libertar aqueles que estão
nas prisões da cidade será particularmente devastador para as comunidades de
cor, disse Molly Griffard, que trabalha com igual justiça na Assistência
Jurídica. Entre julho e dezembro de 2019, mais da metade da população
carcerária da cidade era negra, de acordo com o departamento de correção da cidade.
‘As pessoas encarceradas em Rikers são
pessoas de cor predominantemente de baixa renda, que estão lá por um curto
período de tempo e voltam para comunidades de cor de baixa renda em toda a
cidade de Nova York’, disse Griffard. ‘O que isso significa é que torna essas
comunidades ainda mais vulneráveis à disseminação de uma maneira que as
comunidades brancas ricas que não têm tanto contato com as pessoas da Rikers não
terão’.
...”.
[Disponível em: https://theappeal.org/new-york-city-jails-coronavirus-covid-19-legal-aid-society/.
Acesso em 07.04.2020 às 01h22min].
Evidente que tal prognóstico poderá
repetir-se no Brasil e os principais alvos da doença que
for irradiada das prisões serão as favelas e bairros populares onde vivem os
pobres e a maior parte da população negra do país.
Com relação às características
específicas da prisão em análise, em que os fundamentos que se apresentavam
eram de que o réu se encontrava preso em razão do crime de tráfico de drogas e
já ostentava antecedentes criminais pelo crime de roubo, o STJ exarou decisão
que deve guiar o entendimento dos juízes brasileiros, a nosso ver.
O ministro do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) Nefi Cordeiro, com base na Recomendação 62/2020 do Conselho Nacional
de Justiça (CNJ), concedeu liminar em habeas corpus (HC nº 566128 / SP) para
determinar a adoção de medidas cautelares diversas da prisão no caso de um réu
acusado de tráfico de drogas.
Em sua decisão, Nefi Cordeiro
reconheceu a situação de vulnerabilidade da população carcerária do país diante
da crise de Covid-19. Segundo ele, o risco da pandemia é ampliado nas condições
de aprisionamento, em razão da concentração excessiva, da dificuldade de
higiene e das deficiências de alimentação, comuns no sistema prisional.
O ministro ressaltou também que "o
Judiciário brasileiro permanece atuando, mas com redução de audiências e suspensão
dos prazos, assim prolongando a conclusão dos feitos, daí gerando também maior
risco pela demora das prisões cautelares".
O relator mencionou que, no caso
sob análise, a prisão preventiva foi decretada com base na jurisprudência do
STJ segundo a qual a reiteração delitiva caracteriza a periculosidade do
acusado. Além disso, consta do decreto prisional que o réu possui maus antecedentes
e admitiu, perante a autoridade policial, que vinha comercializando drogas nos
três meses anteriores à prisão.
De acordo com Nefi Cordeiro,
considerando a dificuldade de rápida solução do processo e o gravíssimo risco à
saúde, "Nesse momento, configurada a dificuldade de rápida solução ao
mérito do processo e o gravíssimo risco à saúde, o balanceamento dos riscos
sociais frente ao cidadão acusado merece diferenciada compreensão, para
restringir a prisão cautelar. Apenas crimes com violência, praticados por
agentes reincidentes ou claramente incapazes de permitir o regular
desenvolvimento do processo, poderão justificar o aprisionamento. Crimes
eventuais e sem violência, mesmo com justificada motivação legal, não permitem
a geração do grave risco à saúde pela prisão", salientou o magistrado,
com amparo no artigo 4º da Recomendação 62/2020 do CNJ.
Segundo o ministro, o crime
imputado ao acusado – tráfico ilícito de drogas – não foi cometido mediante
violência ou grave ameaça, e a quantidade de droga apreendida – apenas 15,34
gramas de cocaína – não é relevante.
Portanto, entendemos que o caso
analisado pelo STJ é extremamente semelhante ao caso que analisamos no presente
processo: réu preso em razão do crime de tráfico de drogas que já
ostentava antecedentes criminais pelo crime de roubo, tendo sido apreendida uma
pequena quantidade de entorpecentes, 30,4 gramas de maconha. Portanto, merece
solução igual a que foi encontrada pelo Ministro do STJ.
Ante o exposto, CONVERTO A PRISÃO
PREVENTIVA DE F,M.C.J. EM PRISÃO DOMICILIAR, por analogia ao disposto
no art. 318, II, do CPP, impondo-lhe ainda, nos moldes do art.
319, IX, do CPP, monitoração eletrônica.
Expeça-se o competente alvará
de soltura para prisão domiciliar.
Servirá o alvará de soltura para
prisão domiciliar como comunicação à SEAP acerca da presente decisão para que
monitore eletronicamente o acusado, procedendo às devidas orientações,
devendo ser informado imediatamente a este juízo assim que a medida for
implementada.
Dê-se ciência ao Ministério
Público, excepcionalmente, via e-mail.
Cumpra-se.
Belém/PA, 07 de abril de 2020.
Flávio
Sánchez Leão
Juiz de Direito
Titular da 7ª Vara Criminal”