Na
sentença que segue reproduzida adiante tratamos de vários aspectos jurídicos relacionados
ao crime de furto praticado por dois moradores de rua, os quais furtaram do
interior de uma residência um relógio de pulso e um aparelho de telefone
celular.
A
defesa levantou a tese de “furto de bagatela”, defendendo que os acusados
fossem absolvidos pela aplicação do “princípio da insignificância”, em razão do
irrisório valor das coisas furtadas, sendo que a vítima havia, de qualquer
forma, recuperado todos os objetos, pois os réus foram presos ainda em
flagrante em posse do produto do furto.
Como
poderemos ver na sentença, a tese de furto insignificante foi acatada e os réus
acabaram absolvidos.
Entretanto,
passaram vários meses presos provisoriamente antes de serem julgados. A
liberdade provisória dos mesmos havia sido indeferida em razão de que não possuíam
identidade civil e, como se tratavam de moradores de rua, não tinham paradeiro
onde pudessem ser encontrados pelo Poder Judiciário.
Ou
seja, passaram vários meses na prisão preventiva em razão da condição social
que ostentavam. Não ficaram presos em razão do crime pelo qual estavam sendo
acusados, mas sim em razão do fato de serem moradores de rua e não possuírem
identidade.
Acerca
da acusação de furto, acabaram sendo absolvidos. Mas tiveram que pagar pelo fato
de serem marginalizados da sociedade, moradores de rua e não possuírem
identidade, como se a sua condição social fosse um delito criminal em si mesmo.
Este
tipo de situação se repete diariamente no Brasil afora. As pessoas continuam
sendo mantidas em prisão preventiva, por menor e pouco grave que tenha sido o
delito criminal que cometeram, em razão de não possuírem identidade civil, pois
o art. 313, parágrafo único, do Código de Processo Penal prevê: “Também será admitida a prisão preventiva
quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não
fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado
imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese
recomendar a manutenção da medida”.
Está
mais do que na hora de se começar a julgar inconstitucional este dispositivo
legal a fim de evitar situação como a ocorrida que apreciamos na sentença a seguir:
“Secretaria da 7ª. Vara
Criminal
Sentença – 3013.00356057-06
Processo Nº 0006661-72.2012.8.14.0401
O MINISTÉRIO PÚBLICO
ESTADUAL apresentou denuncia contra J.S.L e contra F.C.T alegando que, em
19/04/2012, os dois teriam cometido contra a vítima, J.S.M, o crime de furto
qualificado pelo concurso de pessoas e pela destruição ou rompimento de
obstáculo à subtração da coisa, afirmando o Parquet que os réus furtaram de
dentro da casa da vítima um aparelho celular e um relógio de pulso.
Os réus foram presos
em flagrante e se encontram encarcerados desde a data do fato, tendo-lhes sido
negado o direito à liberdade provisória.
A denúncia foi
recebida em 15/05/2012, tendo sido os réus citados.
Após realizada a
instrução criminal, o Ministério Público pede a condenação nas penas do art. 155,
§4º, I e IV, do CPB.
A Defesa, por sua
vez, pede a absolvição com base na tese de que se trata de crime de bagatela ou
famélico e, alternativamente, a aplicação de atenuante pela confissão
espontânea.
É o breve relatório.
DECISÃO.
Os réus serão absolvidos.
Porém, antes de
adentrar no mérito, vale a pena relatar acerca da pessoa dos acusados.
J.S.L não sabe dizer
nem a data do seu nascimento, é analfabeto, afirma que veio de Cametá, interior
do Pará, e estava passando fome nas ruas. Informa que tinha que pagar trinta
reias por diária se quisesse dormir abrigado em uma casa, senão dormia nas
ruas.
F.C.T trabalhou com o
padeiro e parou de estudar. Diz que os dois réus trabalhavam carregando açaí no
Ver-o-Peso. Afirma que não mora com a mãe por causa do padrasto, que o
espancava e às suas irmãs quando pequenos, motivo pelo qual morava nas ruas e,
por fim, admite que era usuário de drogas pelas ruas de Belém.
A liberdade dos
acusados foi indeferida com fundamento no fato de que os dois não possuíam
identificação civil e nem paradeiro onde pudessem ser encontrados. Logo,
justamente por se tratarem de dois moradores de rua tiveram o benefício da
liberdade provisória negado.
Ou seja, podemos
concluir que permaneceram presos não em razão do crime pelo qual foram
acusados, mas sim pela condição social que ostentavam.
Agora, que serão
absolvidos, fica clara a violação constitucional em que incide tal tipo de
decisão, já estando mais do que na hora de considerar-se inconstitucional o art.
313, parágrafo único, do CPP, incluído pela Lei nº 12.403, de 04 de maio de
2011, que dispõe: “Também será admitida a
prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou
quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o
preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se
outra hipótese recomendar a manutenção da medida”.
Tal dispositivo gera
a situação com que nos deparamos no presente caso – a pessoa permanece presa
por não ter identidade civil e não em razão do fato criminoso pelo qual está
sendo acusado – sendo que agrava mais a situação o evento de que os réus, no
final das contas, foram identificados criminalmente, tendo-se, inclusive,
colhido suas digitais, conforme se vê nas fls. 39 e 41. A partir daí, de suas
identificações criminais, é que não se justificava mesmo a manutenção da prisão
cautelar dos réus. Passaram vários meses presos provisoriamente e agora serão
absolvidos.
Passo à análise do
mérito.
A denúncia apresentada
pelo Ministério Público relata que os réus teriam pulado a janela da casa do
réu. Pular a janela não é arrombar, sendo que, embora a denúncia capitule o
crime no inc. I, do §4º, do art. 155 do CPB, não há descrição fática da
ocorrência de destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa. Logo
não há acusação válida de furto qualificado pela destruição ou rompimento de
obstáculo à subtração da coisa, pois, para que tal acusação fosse válida este
fato deveria estar descrito na denúncia.
Por outro lado, ainda
que houvesse acusação válida, os réus não poderiam ser condenados com base
nesta qualificadora, pois não há nos autos o resultado de nenhuma perícia que
tenha sido realizada, embora a própria vítima informe que uma perícia havia
sido efetivada. Entretanto, não havendo nos autos o resultado da perícia, não
há a prova necessária para a condenação. Nesse sentido, vejamos a
jurisprudência do STJ:
“PENAL. RECURSO ESPECIAL. FURTO QUALIFICADO. ROMPIMENTO DE
OBSTÁCULO.PERÍCIA NÃO REALIZADA. CONDENAÇÃO COM BASE NA CONFISSÃO DO RÉU.DELITO
QUE DEIXA VESTÍGIOS. IMPRESCINDIBILIDADE DO LAUDO PERICIAL.RECURSO PROVIDO. I.
A Jurisprudência desta Corte consolidou-se no sentido da necessidade de perícia
para a caracterização do rompimento de obstáculo, salvo em caso de ausência de
vestígios, quando a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta, conforme a
exegese dos arts. 158 e 167 do CPP. II. Considerando que a qualificadora do
rompimento de obstáculo só pode ser aplicada mediante comprovação por perícia,
salvo quando não há possibilidade de sua realização, afasta-se a incidência da
qualificadora do rompimento de obstáculo. III. Deve ser reformado o acórdão
recorrido, para que seja afastada a qualificadora do art. 155, § 4º, I, do CP,
com remessa dos autos ao Tribunal a quo para redimensionamento da pena. IV.
Recurso provido, nos termos do voto do Relator. (STJ - REsp 1250021 MG
2011/0070315-8, Relator: Ministro GILSON DIPP, Julgamento: 28/06/2011, Órgão
Julgador: T5 - QUINTA TURMA, Publicação: DJe 01/08/2011)
Portanto, afasto a
qualificadora prevista no art. 155, § 4º, I, do CPB.
Restou-nos, portanto,
a qualificadora relativa ao fato de o furto ter sido praticado em concurso de
pessoas.
Como a Defesa levanta
esta tese, cabe-nos analisar se a circunstância de o furto ser praticado
mediante o concurso de pessoas impede a aplicação do princípio da
insignificância.
Filiamo-nos a
corrente que, no STJ admite a aplicação do princípio da insignificância ao
crime de furto qualificado por concurso de pessoas, conforme os seguintes
julgados:
DIREITO PENAL. HABEAS CORPUS. FURTO. BEM RECUPERADO. PRINCÍPIO
DA INSIGNIFICÂNCIA. INCIDÊNCIA. ATIPICIDADE MATERIAL. RECONHECIMENTO.
[...] 3. Não é empecilho à
aplicação do princípio da insignificância o fato de ter sido o crime praticado
em concurso de agentes. Precedentes. 4. Ordem concedida para, reconhecendo
a atipicidade material, cassar o édito condenatório. (STJ - HC n. 140.034⁄MG,
Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, DJe 28⁄11⁄2011 - grifo
nosso).
AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. PENAL. FURTO QUALIFICADO. CONCURSO
DE PESSOAS. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. ATIPICIDADE MATERIAL DA CONDUTA.
[...] 3. Não há incompatibilidade entre
o princípio da insignificância e o fato de o delito ser qualificado pelo
concurso de agentes, porquanto o dado, no caso, não agrega reprovabilidade
maior à conduta. [...] (STJ - AgRg no HC 198431 / SP, Relator Ministro
SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Órgão Julgador T6 - SEXTA TURMA, Data do Julgamento
05/06/2012, Data da Publicação/Fonte DJe 18/06/2012)
Admitida como regra
geral a possibilidade de incidência do princípio da insignificância mesmo em
caso de furto qualificado pelo concurso de pessoas, basta, então, analisar se a
regra deve incidir neste caso concreto que se julga.
Sabemos que a res furtiva se trata de um
aparelho celular da marca LG e de um relógio de pulseira da marca Oriente os
quais foram ambos recuperados pela vítima após a prisão dos réus.
Não há nos autos nenhum registro ou relato,
mesmo por parte da vítima, acerca do valor que possuía a res furtiva. Não se
sabe se os objetos eram usados há muito tempo ou se eram recém-adquiridos e, em
suma, não se sabe qual o seu valor monetário.
Questiona-se: em tais
caos, julga-se pelo princípio da insignificância a favor dos réus, considerando-se
que o Ministério Público não se desincumbiu do ônus de provar o valor dos
objetos?
O Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul já decidiu questão semelhante no seguinte sentido:
“TENTATIVA DE FURTO SIMPLES. OBJETO DE VALOR DESCONHECIDO, PRESUMIVELMENTE
PEQUENO E POSSIVELMENTE INSIGNIFICANTE. ABSOLVIÇÃO POR ATIPICIDADE DA CONDUTA,
CONSIDERADO O FATO CRIME DE BAGATELA. ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE. Recurso provido.
(Apelação Crime Nº 70017860933, Sexta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do
RS, Relator: João Batista Marques Tovo, Julgado em 28/12/2006).”
E, do voto do Relator
do citado acórdão, se extrai a conclusão de que não se pode presumir em
desfavor do réu o fato que o bem subtraído tivesse relevância econômica para a
vítima.
Diz o Relator:
“Veja-se que estamos diante de tentativa de furto simples de um telefone
celular a que se atribuiu valor arbitrário – nos autos de apreensão e
restituição consta o valor de R$ 600,00 (f. 18 e 19) – e no qual houve
restituição do bem a seu dono (f. 19).
Ainda, em se tratando de aparelho de telefonia celular bastante comum
(“SANSUNG A800”), muitas vezes fornecido por empresas de telefonia de modo
gratuito ou em comodato, carecia perguntar ao ofendido qual a expressão
econômica do bem para sua pessoa. E não
se cuidou de fazê-lo. Assim, deve ser
presumido que fosse de pouca expressão econômica.”
O julgado se aplica
ao caso em questão onde deve se presumir a favor do réu, considerando-se que o
Ministério Público não cuidou de demonstrar o verdadeiro valor que possuía para
a vítima a res furtiva.
Ante o exposto,
absolvo os réus, J.S.L e F.C.T, aplicando o princípio da insignificância, com
base no art. 386, III, do CPP.
Expeçam-se alvarás de
soltura.
Após o trânsito em
julgado, dê-se baixa nos registros criminais.
P.R.I.
Belém-PA, 18 de
fevereiro de 2013.
FLÁVIO SÁNCHEZ LEÃO
Juiz de Direito”